29 de abril de 2013

Êxodos de sebastião Salgado


 

  Em preto-e-branco, o mineiro Sebastião Salgado nos retrata os contrastes de nosso mundo. Através da objetiva de sua câmera, seu objetivo é iluminar as calamidades mundiais, trazendo à tona realidades que muitos fingem não ver.

Como fotógrafo, Sebastião Salgado teve oportunidade de estabelecer contatos prolongados com pessoas de todo o mundo. Para ele, seu trabalho nasce desses contatos. “A fotografia não é feita pelo fotógrafo”, declara numa das raras vezes em que fala sobre o seu trabalho. “A foto sai melhor ou pior de acordo com a relação entre o fotógrafo e a pessoa que fotografa.” Por exemplo, no Sahel, preferiu andar de ônibus em vez de alugar um carro, porque quando se chega de carro “é um desastre – você é um homem de carro”, um homem rico, e não “uma pessoa comum.” Em outras palavras, “é necessário ser aceito pela realidade.” Sua filosofia combina com o seu senso pessoal de economia: viajando de terceira classe, cortando seu filme e trabalhando 16 horas por dia revelando milhares de provas por conta própria, Salgado conseguiu financiar suas numerosas e prolongadas reportagens nos países do Sahel – Chade, Etiópia (incluindo a disputada província do Tigre), Mali e Sudão – pela pequena soma de 20 mil dólares, dos quais a ampliação constitui a maior despesa.

Salgado prefere esse método ao de outros profissionais da mídia mais afluente. Observa, por exemplo, que nas três ou quatro semanas que passou num campo de refugiados na Etiópia, mais de 40 equipes de televisão vieram e partiram rapidamente para fazer reportagens sobre multidões de famintos e doentes. Uma equipe dos Estados Unidos alugou um caminhão do governo, passou duas horas na região e partiu. Nos países simbolicamente menos importantes do Sahel, Salgado encontrou somente um jornalista. Para o fotógrafo, estas são reportagens abreviadas, que não dão “tempo algum para entender a realidade que se está fotografando”. Ao contrário, estes jornalistas “levam o que trouxeram”.

Salgado compara sua abordagem à mais famosa filosofia de 35mm, a do “momento decisivo” de Henri Cartier-Bresson. Em 1952, Cartier-Bresson, um dos membros fundadores da antiga agência de Salgado, a Magnum Photos, expressou seu freqüentemente citado credo pessoal no volume clássico das suas fotografias, O Momento Decisivo: “Para mim, a fotografia é o reconhecimento simultâneo, numa fração de segundo, do significado de um acontecimento e da organização exata das formas que o expressam”.

Para Salgado, essa abordagem resulta numa relação fotógrafo-fotografado comparável a uma tangente equilibrada perfeitamente sobre um círculo. O resultado é elegante, dramático e eficaz. Mas para Salgado é preciso entrar no círculo, de certa forma “tornando-se” o fotografado ou, no mínimo, fazendo um esforço para compreender sua existência.  


Metáforas geométricas à parte, a abordagem de Salgado é intuitiva e de forte cunho emocional. Embora fale quatro línguas (português, espanhol, francês e, agora, inglês) e tire proveito de longas conversas com as pessoas que encontra, seu trabalho não começa a partir de uma análise intelectual, e sim de um calor pessoal e uma reverência pela dignidade essencial das pessoas. Na sua respeitosa empatia, essa abordagem aproxima-se do sentido de relacionamento entre o Eu e o Outro de Martin Buber, na qual num momento o Outro se torna a totalidade do mundo do Eu. Seu ponto de vista deriva igualmente da visão do economista influenciado pelo marxismo. Como coloca Salgado, “fotografa-se com toda a carga ideológica”.

Uma empatia consciente e a marcante beleza de tantas das suas imagens transcendem o padrão das pílulas fotojornalísticas, que reduzem o fotografado ao grau da calamidade sofrida. O vocabulário padrão acaba por tornar o humano anônimo, especialmente no Terceiro Mundo, onde o volume de “vítimas” intercambiáveis é o fator que determina a cobertura da imprensa. Nesse processo, as pessoas tendem a ser despojadas de sua própria humanidade e complexidade, incluindo sua cultura e os recursos que lhes permitem a sua autodeterminação. Esse mecanismo faz com que o leitor sinta-se tocado por alguns segundos, até ser acometido pela “síndrome da compaixão” e passar para o próximo segmento de imagens bidimensionais.

Passando mais tempo com as pessoas, Salgado passa a entender melhor seu sofrimento e sua força que, às vezes, adquirem uma qualidade espiritual. Imagens monumentais, sua captura da vastidão da natureza, a iluminação claro-escuro e os tons que parecem vir de uma profunda escuridão, tornando palpável a pele causticada de um rosto, contribuem para uma perspectiva mais transcendente e duradoura da posição desses homens e mulheres na nossa história. A intenção documental do fotógrafo pode ter raízes nostálgicas, mas as imagens em si contêm uma presença vital.

O fotógrafo enfrenta um dilema curioso. A abordagem documental de Salgado, se mais consistente, também contém um tratamento imaginário, um grau de interpretação que transcende o caráter aparentemente casual da fotografia e dá profundidade à sua obra. Enquanto respeita os fatos de uma situação, Salgado tenta recriar, por intermédio da metáfora visual, o que considera representar o drama humano essencial da história – tornando visível o invisível.

O trabalho de Salgado, embora confinado ao momentâneo pelo mecanismo da câmera, não celebra ou captura a arbitrariedade de um instante ou sua manifestação física. Ao contrário, sua obra procura articular a eternidade do momento e sua profundidade efêmera e trazer à tona uma presença mística, envolvente. Essa característica é compartilhada por outros artistas latino-americanos, também atraídos por uma perspectiva comumente denominada realismo mágico. De igual modo, ao enfatizar a singularidade do indivíduo nas suas imagens, Salgado também sublima sua universalidade. “Somos todos um povo – provavelmente um só homem.” Existe tecido nesse documento de fugacidade – sobre os camponeses latino-americanos, a fome na África ou os trabalhadores manuais de todo o mundo –, uma ressonância lírica, a impressão épica, a paisagem icônica. O antigo economista invoca um sentido poético de sofrimento tão profundo que, em suas expressivas ampliações, a dualidade da luz da escuridão, da vida e da morte, são reunidas em cenas que lembram a mais dramática iconografia judaico-cristã.




















(Trechos do “Documentarista Lírico”, publicado no livro Um Incerto Estado de Graça (Caminho), 1990. Copyright Fred Ritchin 1990


Fonte:

http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/exodos/frame_home1.htm
https://www.youtube.com/watch?NR=1&v=dW02k00sE7I
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/discursosfotograficos/article/view/1938/1673
http://www.amazonasimages.com/

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